O DIÁRIO DE UM ROMANO


Roma, 99 d.C.

Desde quando eu me lembro, as pessoas sempre foram escravas, fossem do marido, de algum senhor de terra, ou de qualquer um que estivesse acima dos demais. Pessoas com poder, influência, que tinham o sangue azul correndo nas veias, que possuía mando. Pessoas muitas vezes tidas como terríveis. Pessoas assim como eu.
Sempre estive ao lado do imperador Domiciano, eu era seu primo, além de seu conselheiro. Fui eu o primeiro a perceber que Roma estava se manifestando contra seu governo marcas deixadas pelo reinado de irmão, Tito, que em seu curto reinado – dois anos apenas – sofreu por pragas em Roma, a erupção do vulcão Vesúvio e o incêndio de Roma. Mas, ainda assim, Tito ficou marcado como um bom imperador, fruto da sua generosidade com as vítimas dos desastres e por várias construções públicas construídas a seu mando. Além disso, antes de ser imperador, ele havia sitiado e destruído Jerusalém, e matando vários judeus. Feito que o fez cair nas graças de Roma e lhe rendeu a construção do Arco de Tito, e que, acho eu, também lhe rendeu aquela morte por febre e um reinado tão curto. Mas, antes de morrer Tito inaugurou Anfiteatro Flaviano, ou Collosseum, mais conhecido como Coliseu, onde se encontrava antes a grande estátua do antigo imperador Nero, e o seu Palácio Dourado, ambos demolidos para a construção da arena. As obras tinham começado no tempo do imperador Vespasiano, e Tito proclamou a inauguração da construção que seu pai começara, mesmo as obras só vindas a ser acabadas depois de sua morte, na época atual, no reinado de seu irmão mais novo, Domiciano.
O espetáculo inaugural foi marcado pelos jogos dos cem dias, onde Tito tentando agradar o público e os deuses de Roma, matou cerca de nove mil animais e duas mil pessoas, homens e mulheres, com os seus jogos sombrios – rinhas entre animais, ou caça aos animais, chamado de “venatio”, execuções de criminosos e as batalhas entre gladiadores, as “muneras”. E para acompanhar esse fato, Tito instituiu novamente a política de seu pai; a do pão e circo, onde o Coliseu passou a receber multidões por dia para apreciar os sangrentos duelos entre os escravos obtidos em todas as colônias romanas, e entre as feras trazidas da África, assim desviando a atenção da plebe da real situação governamental de Roma, pois, dando ao povo espetáculo e a alimentação gratuita não haveriam revoltas ou questionamentos, o populacho iria adorar transitar entre os poderosos senadores e até mesmo perto da corte imperial romana. Só que a política do pão e circo trouxe bastante prejuízo aos nossos cofres, o gasto foi altíssimo, e como os grandes senhores não podem perder dinheiro, os valores dos impostos subiram absurdamente, e o que era para agradar passou a desagradar. O populacho ficou ainda mais furioso, muito mais que antes, bastaram alguns motins para que o caos surgisse, e foi aí que as coisas começaram a piorar; o povo cobrava mais espetáculo em troca de seus maiores custos com o governo, e se a vida dos outros nunca foi tão importante para nós, por que seria agora? Começaram a surgir então as verdadeiras batalhas sangrentas. Antes, quem dava a ordem de quem vivia e quem morria era o imperador, com um simples sinal de positivo ou negativo; agora, a multidão tinha voz, quem decidia quem morria ou vivia era o público com seus gritos e berros, a plateia nefasta, a orquestra do mal.
Meu dever era sempre aconselhar o imperador Domiciano em seu reinado, fazer com que seu governo não fosse como o de seu precedente, mas o imperador é um homem prepotente e totalmente egocêntrico de forma que, se não fosse do modo que ele queria nada era feito. E assim, como neste escrito, que talvez seja meu último, onde eu passo o que eu sei sobre Roma, eu fiz para outras pessoas, ajudei estrangeiros, livrei inocentes da morte sangrenta na arena sendo mutilados por animais ferozes, e por isso passei de conselheiro do imperador para prisioneiro condenado.
Hoje é meu último dia, provavelmente. Hoje eu entrarei naquela arena sendo visto por mais de cinquenta mil pessoas nas arquibancadas, desde os sentado no podium, os acentos de mármore feitos para classe alta, até os que estiverem sentados nos pórticos de madeira feitos para a plebe e as mulheres, e todos eles estarão sedentos por meu sangue. Serei fulminado, e esse será meu último manuscrito. E antes de morrer eu olharei o pulvinar, a tribuna imperial, onde vão estar o imperador e os senadores e magistrados, e demonstrarei minha convenção na fé, assim como muitos cristãos que morreram após serem jogados na arena para serem devorados por leões ou tigres famintos, eu não lutarei, pois sei que será em vão, não tenho nenhuma afinidade com espadas, então morrei de braços abertos, assim como Cristo morreu. Não sei se ressuscitarei assim como ele, provavelmente não, mas morrei de braços abertos, e que Deus cuide do meu espírito.
O sylvae, o cenário real criado para apresentação de episódios da mitologia romana, feito para deixar as coisas mais “emocionantes” está sendo preparado para mim. Não sei o que me espera, mas deve ser algo grandioso, porque o imperador Domiciano quer utilizar minha execução para mostrar que em seu reinado pessoas vinda da burguesia como eu também pagará pelo o que fizer. E assim ele mente para todos, e o pior é que muitos crerão e continuarão sendo lesados por suas palavras.
Eu já vi muitos morrerem no sylvae, quem entra lá está obrigado a representar algum inimigo de Roma – sempre um inimigo que nós vencemos – e esses que entraram no sylvae sempre foram mortos de maneiras horríveis, mas mitologicamente autênticas, como fazemos com os nossos inimigos, ou o que sempre foi dito nas lendas de Roma. Hoje é minha vez, e eu já posso ouvir os gritos da multidão que esperam para ver meu sangue e ter certeza que os burgueses não possuem sangue azul. Um líquido vermelho escorrerá por fendas em um corpo e manchará o barro castigado. Irei partir deste mundo por descumprir a vontade do meu imperador, por fazer o que eu achava que era certo, e quem ler estas últimas folhas deste diário saberá o quão sujo nós romanos somos, e eu espero que um dia o mundo saiba disso, assim como espero que este povo mude e encontre outra forma de viver. Só me entristece ter a quase certeza de que o território da minha morte um dia será considerado santo.



O diário intitulado como O Diário de um Romano foi encontrado um ano depois do Papa Bento XIV, no século XVII, consagrar e declarar o Coliseu um lugar sagrado.

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