DESPRAZERES


- Te espero para jantar hoje? – perguntou Karen com o tom triste que já carregava há tempos em sua voz sempre que se referia ao marido.
- Quantos outros dias vou ter de te dizer que não? – Carlos pegou uma maça e a mordeu olhando bem na face de sua esposa, lançando sobre ela um olhar agressivo. – Quantas outras vezes eu vou ter de te dizer que entre nós já não existe mais nada?
Karen não achou palavras para fazer frente à tristeza que se instalou em seu coração no momento em que seu marido lhe disse aquilo, a única coisa que conseguiu fazer foi fungar o escorrimento imediato do nariz, mas não o rolar das lágrimas em seu rosto. Cada vez que seu marido lhe dizia palavras como aquelas ela sentia seu corpo cair num espaço sombrio, sem fim. Encarou-o e enxergou o olhar cínico que ele lhe lançava, passou a costa da mão sobre a face e deu-lhe as costas.
- Por que você se virou assim? – disse o homem. – Por que você se virou assim? – gritou. – Não estávamos conversando? Ande, olhe para mim! Olhe para mim!
Karen não queria se virar, não queria demonstrar sua fraqueza, as lágrimas que rolavam em sua face, queria que seu marido fosse logo embora, queria ficar apenas sozinha. Mas ele insistia para que ela se virasse, e ela se manteve de costas para ele até o memento em que ele segurou seu corpo apertando seus braços contra o tronco e a virou com um movimento brusco.
- Quando eu estiver olhando para você, olhe para mim! – disse ele, puramente agressivo, sacudindo-a com força. – Eu já te disse isso.
- Me solte! – berrou ela, tentou se livrar das mãos que lhe a machucava, mas era frágil. – Você está me machucando, Carlos. Tá doendo. Me solta!
Ele a estapeou e logo em seguida a soltou por cima do botijão de gás, fazendo-a se chocar sem proteção alguma contra o botijão, e depois rolar para o lado, com o supercílio aberto. O sangue aproveitou a fenda em sua pele para deslizar por sua face. Desesperou-se em prantos, na mente surgiram todas as lembranças das pessoas que te disseram que não era para casar-se com aquele homem, mas que ela, infelizmente, não tinha dado ouvidos. Tentou se erguer, caiu por ainda estar tonta. Do chão, procurou o marido com os olhos, e não o encontrou, ele tinha a deixado naquela situação e partido, muito provavelmente para encontrar a amante.
Aquela não tinha sido a primeira vez que ela apanhava, os socos, tapas e pontapés sofridos já estavam em sua rotina. Arrastou-se e se encostou à parede. Ouviu a porta de casa abrir, pensou ser ele que voltava para agredi-la novamente. Tremeu quando ouviu os passos se aproximar, se encolheu no canto, mas então notou que os passos eram leves e rápidos; era sua filha que chegava da escola e corria em sua direção. A menina possuía um largo sorriso no rosto.
- Cheguei, mamãe – disse alegremente.
Mas, quando viu sua mãe no chão, encostada, sangrando, correu em desespero para acudi-la.
Aquele era o principal motivo de Karen ainda aturar todas as agressões de Carlos; a filha do casal, a pequena Pietra. Ela temia pela filha mais que a própria vida. O miserável já tinha ameaçado matar a menina caso ela decidisse ir embora. E criar coragem para se afastar daquele maldito homem era ainda mais complicado para ela pois a menina era apegada ao pai, que a tratava muito bem, chegando a parecer nem ser a mesma pessoa. Karen temia entregar seu marido a polícia e fazendo sua filha sofrer por sua ação. Temia pela vida das duas. E chorou no colo da filha, que a envolveu nos braços, invertendo os papeis.
- O que aconteceu, mamãe?
Karen abraçou a filha, seu sangue manchava a blusa alva da criança.
- Eu escorreguei, filha. Estou assim por ser uma idiota e não perceber que o chão estava molhado. Como foi a aula? Venha, vá tomar banho para almoçar, fiz lasanha para você.
Levantou com a ajuda da filha, enxugou as lágrimas e, percebendo que sangrava demais, foi cuidar da ferida. A menina correu para o quarto, tinha acreditado na história de sua mãe. Karen viu o próprio reflexo no espelho do banheiro e voltou a chorar. Sentiu enjoo, na alma e no corpo, e sentou na privada com tristeza, olhando para a embalagem do teste de gravidez que tinha comprado.
A vizinha chegou à sua casa ainda naquele dia. Ao abrir a porta a proprietária percebeu o desagrado no rosto da recém-chegada, que lhe abraçou, dando-lhe o colo amigo que precisava.
- Mais uma vez, Karen? – sua amiga falou com intrepidez, reprovando-a. – Mais uma vez, Karen?
Ela balançou a cabeça.
- Karen, o que você está fazendo consigo mesma? Você morre aos poucos vivento aqui com esse homem. Você fica cada vez mais irreconhecível.
- Não é por ele, Diana, eu temo por minha filha.
- Nada de grave aconteceria a sua filha, se você entregasse esse homem à polícia, Karen. Sua filha terá de entender. Conte qualquer coisa a ela até que ela possa saber a verdade. Pense que isso que acontece com você hoje, pode acontecer com ela amanhã. E qual exemplo você terá dado a ela, ficando aqui e sofrendo? Entregue esse homem à polícia. Ele seria preso.
- E depois? – Karen gritou as palavras. – O que ele faria com a gente depois? E se ele não for preso?
- E você prefere ficar sofrendo assim? Apanhando todos os dias? Sendo destratada e traída?
- Eu não sei o que fazer. Eu o temo. Ele é perverso. Ele ameaçou que se eu o deixasse ele mataria minha filha. Você sabe o que é isso? Aposto que nunca passou por uma situação dessas, seu marido sente amor por você. Você não sabe o que é sofrer, viver com alguém que pode te tirar o que você tem de melhor a qualquer momento. Você não sabe!
Diana ignorou insultos de sua vizinha, sabia que o desespero lhe causava aquele comportamento, pensava que qualquer pessoa naquela situação faria o mesmo. Mas resolveu agir.
- Se você consegue aturar isso, Karen, eu não consigo saber de uma coisa dessa e ficar parada, sem fazer nada. Eu vou ligar para seu irmão. E vou denunciar seu marido.
A anfitriã segurou a visita pelos braços implorando para que ela não fizesse aquilo, mas, mesmo com todo medo do mundo de estar fazendo algo que prejudicaria a amiga, Diana se desvencilhou dos braços da amiga e ligou para seu irmão, passando tudo o que sabia para ele, causando uma surpresa tremenda, pois Karen escondia de seus familiares todas as agressões que sofria. E vendo a amiga em desespero, chorando, lhe xingando, Diana ligou logo em seguida para a polícia.
- Deixe de ser idiota, Karen, senão quem irá meter a mão em sua cara sou eu. Vamos sair daqui. Vamos para minha casa. Pegue sua filha e vamos.
- Não!
- Deixe de ser idiota, mulher. Temos de garantir que seu marido não a faça mal. Pense em sua filha.
Mesmo relutante, Karen cedeu. Pegou dinheiro, documentos, sua filha e partiu para a casa da amiga.
- Ele não conseguirá entrar lá – disse Diana.
- Tomara. Ele será capaz de me matar, caso me encontre.
- Ele não vai te encontrar, fique tranquila.
Acolheram-se no apartamento. Karen ou viu o celular tocar várias vezes, o identificador de chamadas mostrava que era o pessoal de sua família, e ela ignorava todas e quaisquer ligações que recebia. Uma mensagem de texto também lhe foi enviada, e ela leu, pois o que ela não queria era ouvir as vozes de seus parentes a reprovando por tudo o que tinha feito, ou deixado de fazer. A mensagem era de seu irmão, dizia que ele estava se dirigindo para encontrá-la. E logo em seguida outra mensagem lhe foi enviada, e esperando que fosse algum de seus parentes ela visualizou a mensagem, levando um susto quando viu que seu marido era quem lhe tinha encaminhado a mensagem. Arremessou o celular longe, sem ler a mensagem. Correu desesperada para agarrar a filha e a viu falando no celular, sorridente.
- Largue isso, Pietra! – ordenou. Tomou o celular da mão da menina assustando-a, viu que era com o pai que ela conversava, desligou o telefone e tomou a menina no colo.
- Papai disse que já vem pra cá, mamãe.
Karen correu para avisar a Diana, mas a vizinha já estremecia com a visão que tinha da janela. Encostou também para observar, e viu que Carlos tinha descido do carro e se aproximava da casa com uma arma na cintura, exposta sobre a camisa.
- Corra para o quarto, Karen, e tranque a porta.
Pietra se assustava sem saber o que acontecia, se agarrou a mãe. Karen correu em direção ao quarto, mas parou quando a pistola foi disparada contra a maçaneta da porta e logo depois arrombada por um pontapé.
Carlos estava com os olhos vermelhos, respirava forte. E apontava a pistola contra ela e sua filha. Karen estremeceu, chorando em desespero, sua filha também. Diana ficou estatelada, sem se pronunciar ou esbouçar qualquer reação.
- Por favor, Carlos, não faça isso. Por favor, Carlos. Não! – gritou. O terror foi grande quando ele engatilhou – Não!
Ele apenas apontava a arma, engatilhada, mas sem disparar o projétil. O ódio exalava em seu corpo.
- Eu quero minha filha, sua vadia. – E foi se aproximando apontando a arma para a mulher e às vezes para Diana. Tomou a filha das mãos da mãe, que caiu de tontura, totalmente desesperada. – Eu devia te matar agora mesmo, Karen – apontava a arma tremendo com a raiva. – Eu devia te matar.
- Por favor, não – interviu Diana, de subitamente. E Carlos, de sobressalto, se virou disparando a pistola contra ela.
Karen gritou. Carlos apontou a arma mais uma vez para ela, mas não atirou, apenas saiu da casa carregando Pietra em seus braços.
A mãe se aproximou da janela e viu Carlos colocando a filha dentro do carro e saindo em disparada sendo seguido pela polícia, que se aproximava bem na hora em que ele guardava a arma.
Diana estava no chão. Não estava morta, o tiro tinha atingindo seu ombro, mas ela perdia sangue demais. Karen ligou para a emergência e viu todo o caos consumir sua vida naquele dia.
A polícia retornou, e com ela trouxe a notícia de que seu marido tinha morrido. E se fosse apenas isso ela estaria feliz. Seu marido morreu após derrapar na estrada e descer encosta abaixo, capotando várias vezes, e, infelizmente, ele não estava sozinho no carro.
- Não! – gritou – Não! Minha menina não!
O desespero foi grande. Sua mente estava atordoada, seu corpo entrava em estado de choque, tremia incessantemente. Correu para o banheiro, abriu todos os fracos de remédio que possuía buscando cometer suicídio, destruiu tudo o que encontrou, suas mãos sangravam e as paredes ecoavam seus gritos de insanidade. E antes que os polícias entrassem para acudi-la, ela enxergou o resultado do teste de gravidez que tinha feito.
Desmaiou.

Comments (1)

Prendeu minha atenção desde o início. Só de pensar que muitas mulheres passam por isso hj em dia me da ódio.
Não entendi o final... Se ela descobriu que estava grávida, não seria algo bom, mesmo sendo de um crápula?
Beijos.

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