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HIVERN


É estranho. É muito estranho, ter de escrever tudo o que vou começar a escrever. Escrever sobre mim, sobre meus pensamentos, da forma que eles surgem tão claros em minha mente e depois se tornam tão distantes, quando quero passar para as peles de texugo que separei para que pudesse escrevê-los. Meus pensamentos trabalham em uma velocidade tremendamente acelerada, que acho que eu não consigo acompanhá-los para relatar tudo em manuscritos. Às vezes, eu penso até que sou um garoto especial, um garoto que pode fazer grandes coisas, algo que faça pessoas me aplaudirem. Eu não sou um gênio, longe disso, não sei fazer cálculos nem mesmo escrever corretamente, eu não entendo todas as regras da abençoada arte da gramática, e as pessoas que tentaram me fazer entender desistiram após algum tempo. Elas diziam que eu era um menino lunático, que vivia em outro mundo, que eu estava predestinado a limpar merda de porco. Eu chorei por vezes por causa dessas pessoas. Chorei muito e, pra ser sincero, até hoje eu ainda me pego chorando por culpa delas. Parece que elas são enviadas por deuses malignos para me atormentar, pra me abater, me oprimir. Mas eu nunca acreditarei no que elas me disseram.
Meus pensamentos giram em torno de histórias, lendas e fantasia. Eu me pego muitas vezes durante o dia deixando de realizar uma tarefa apenas para deixar minha mente voar pelos horizontes da imaginação. Nesses momentos, eu me separo de mim mesmo, o mundo parece que não existe ao meu redor, deixa de ser real, a realidade se torna os meus pensamentos, as coisas que imagino. Talvez isso faça de mim realmente um lunático, mas é assim que eu sou, é assim que eu amo ser.
Hoje o dia está bem quente, por isso minha pele fica bastante vermelha, uns caroços começam a surgir, várias pequeninas bolhas se formam e começa uma coceira desgraçada. Ainda bem que meu pai não sabe ler, pois se ele soubesse e visse o adjetivo que eu acebei de usar para a coceira, eu ia apanhar até a morte. Até a morte já é demais, meu pai não ia me matar por isso, mas eu ia apanhar muito. Meu pai é um homem que acha que xingamento traz má sorte, ele é puramente supersticioso. Não importa o quão pouco seja o xingamento, ele sempre acha que é o pior dos males. Ele é um padeiro, e uma vez todos os seus clientes passaram a comprar pão com outro padeiro, e ele culpou meu tio Avelino por isto. Ele disse assim:
- Você pronunciou esse nome eu meu estabelecimento. Você deveria arcar com todos os prejuízos.
Meu tio ainda contestou.
- Eu só disse: que bosta.
Para meu pai, até mesmo “bosta” traz má sorte. E meu tio tinha trazido ainda mais a má sorte para a padaria.
- Você disse novamente, Avelino. Será que não consegue me respeitar? Será que vou ter de te expulsar?
Então tio Avelino se sentiu culpado e passou a espalhar que o preço na padaria de meu pai tinha abaixado, e com isso as pessoas voltaram a comprar o pão de cada dia com meu pai, que relutou em ter de abaixar o preço, mas depois percebeu que fora uma boa ideia.
Eu tenho de me atalaiar para não escrever palavras que meu pai não goste. Esse é o ruim da tinta; ela não apaga assim tão fácil, precisa de um processo longo de raspagem e eu não sei fazer. Mas se alguém ler isso pro meu pai, minha pele esquentará ainda mais. Ele diz para eu seguir os passos dele. Não pronunciar esses tipos de coisas, pois ainda sou muito jovem e a má sorte me acompanharia até o fim de minha vida. Meu pai me encontrou nos fundos da padaria, em uma noite fria de inverno. Disse-me que meu choro estava sendo abafado pelos fortes ventos, que tinha sido sorte ele ter ido despejar o lixo um dia antes do dia que ele despejava costumeiramente. Se não fosse por isso, eu já estaria morto. Eu fiquei vários dias entre a vida e a morte, e muito mais para a morte do que para a vida, só que trouxeram um druida que estava de viagem por essas terras e ele conseguiu expulsar a enfermidade que me tragava. O druida foi quem me deu o nome que tenho hoje, Hivern, que significa inverno na língua do druida. Não sei por que meu pai deixou o druida me batizar, e nem sei por que o druida me batizou com o nome do inimigo que tentou me matar. Aliás, o inverno não tem culpa de nada, não foi o inverno que tentou me matar, e sim a pessoa que me abandonou. Não posso dizer que foi minha mãe, pois não sei se foi realmente ela; alguém pode ter me roubado dela e depois ter desistido de me criar, ou então nem queriam me criar, apenas fazer sofrer a mulher que me pariu. Mas, de qualquer forma, fico pensando como alguém é capaz de fazer uma coisa dessas. Não há como apagar o passado, mesmo que se torne uma tênue reminiscência, isto já está marcado como parte de mim.
Hoje à noite meu pai trará os pães que ele coloca novamente no forno quando completa três dias de dormido. Meu pai prefere comer com a geleia de framboesa que Dona Helena vende em seu armazém, assim eu posso ir lá ver a filha dela, Luiza, o fruto de minha árvore, o meu raiar do sol, minha essência de vida. Toda vez que vou ao armazém Dona Helena me recebe com um sorriso, eu procuro logo Luiza e essa também me recebe com um sorriso. Dona Helena me ama e eu amo a filha dela. Uma vez ouvi meu pai conversando com Dona Helena e ela disse que eu e Luiza gostávamos um do outro. Eu não sei de que forma de gostar ela falava, porque ela também disse que nós ainda não sabíamos o que era o amor, pois não tínhamos idade para isso, mas que algum dia iriamos saber e que ela ficaria muito feliz em ver Luiza e eu juntos. Mas, se eu ainda não sei o que é o amor, o que é que eu sinto, então? Se não for amor, eu tenho até medo de quando eu realmente gostar de alguém.
Eu e Luiza, quando menor, corríamos em disparada pelas ruas de barro daqui da rua. Era um tempo muito bom; éramos crianças felizes e sem obrigações. Corríamos com as outras crianças, com os meninos da rua de trás. Sempre estávamos juntos. Só que uma vez eu peguei Luiza e um dos meninos da rua de trás encostando os lábios. Eu me escondi detrás dos entulhos e fiquei só observando os dois. Até então, eu sempre achei que Luiza gostava de mim, só era muito acanhada, mas ali eu vi que ela não gostava de mim. O chão se abriu sobre meus pés quando eu vi aquela cena, eu não consegui fazer nada além de observá-los. Depois eu me irritei comigo mesmo por ter me prestado aquele papel, nem coragem de sair do esconderijo e colocar o garoto pra correr eu tive (se bem que ele que poderia me colocar pra correr) eu fiquei apenas observando a cena. Mas ainda bem que eu não sair do esconderijo pra ir contra o garoto. Seria uma ação que, talvez, hoje, eu também me arrependesse. Quando eles cansaram de encostar os lábios, Luiza veio me procurar. Eu jurei para mim mesmo que ia tratá-la com frieza, mas não consegui, eu ainda estava apaixonado por ela. No outro dia, os dois voltaram a se encontrar, e dessa vez eu a tratei mal.
- Eu não quero saber de você, sua traidora – eu disse.
- O que aconteceu, Hivern. O que foi que eu fiz? – ela possuía uma voz que me deixava louco só de escutar. Seus cabelos negros formavam uma única trança atrás da cabeça, sua pele bem branca possuía o cheio do melhor dos perfumes, seus olhos castanhos eram tão atraentes que me faziam desviar o olhar para não ter de me ajoelhar na sua frente e pedir para que ela namorasse comigo. Ela já era linda quando menor.
- Eu não quero saber de você, Luiza. Vá embora.
- Não somos mais amigos? – ela encurtou o ombro, fez uma cara de tristeza.
- Se um dia você foi minha amiga, já não é mais. Agora, me deixe em paz! – disse com bastante raiva.
E ela foi embora, em lágrimas. Aquele dia eu também fiquei bastante triste, sem saber o que fazer. Triste por ter a tratado mal, mais triste ainda pela cena que vi. Mas erámos crianças, e criança tem uma facilidade de perdoar invejável. Eu falo assim como se já fosse um adulto, mas hoje eu vejo que a facilidade que eu tinha de perdoar a uns seis anos atrás, hoje, eu já não tenho mais. Em uma tarde de sol fraco e céu acinzentado, lá estava eu e Luiza conversando juntos novamente. Ela não tinha mais visto o garoto da rua de trás, ela disse que ele havia se mudado para outro lugar. Eu abri um sorrisão quando ela me contou isto, ele era o único com quem ela se dava bem depois de mim, e quando ele partiu, eu fiquei sendo o único com quem ela gostava de ficar, e ela já tinha me perdoado pela ignorância que a fiz.
E foi nessa tarde que aconteceu algo que mudou a minha vida.
Naquela época eu ainda não era tão fascinado por truques e artimanhas como sou hoje, eu até duvidava de algumas coisas que ouvia falar. Para que eu acreditasse em algo, tinha de me mostrar. E foi isso que aquele ilusionista fez.
Todos dizem que um ilusionista de verdade não pode ser um mago, pois a magia faria todo o trabalho que era para o homem fazer. Não teria graça, pois nós saberíamos que quem fez o truque foi a magia, e não o ilusionista. Mas aquele ilusionista que se chegou para mim e Luiza naquele dia com toda certeza era um mago. Eu aposto com qualquer um, eu andaria pelado na rua se aquele ilusionista não fosse um mago.
Só estava eu Luiza quando, subitamente, ele apareceu em nossa frente, nos mostrou um baralho de cartas e começou a misturar. Depois, ele fez um leque com as cartas, colocando a nossa frente. Cada um de vocês, pegue uma, ele nos disse, ainda me lembro bem que foram essas palavras que ele usou. E se eu não era tão fascinado por truques e mistério naquela época, Luiza já era. Eu tentei ir embora, tinha achado aquele homem muito estranho, mas ela insistiu para que ficássemos e puxássemos as cartas, e eu aceitei.
- É melhor irmos embora – ainda insisti.
- Se você for embora, eu fico. E se acontecer alguma coisa comigo, você será o culpado, Hivern. Quer que aconteça algo comigo? – ela era uma chantagista que só.
- Não, não quero – acabei por dizer.
Então seja homem e fique comigo, ainda disse-me ela com um olhar frio e calculista que somente as mulheres são capazes de fazer. Ele, o ilusionista, abriu um sorriso meio que cínico. Usava uma cartola preta na cabeça que deixa que seus cabelos saíssem pelas bordas e um manto negro de tecido grosso, mas caro.
Luiza puxou a carta, minha barriga gelou, tinha curiosidade de saber o que era até mesmo antes dela, e quando ela virou a carta, vimos que estava em branco.
- Não tem nada aqui – disse Luiza, desapontada.
O ilusionista sorriu.
- Olhe de novo – disse.
E quando olhamos novamente tinha um bobo da corte na carta, com guizos no chapéu, segurando uma adaga. Não entendíamos o que aquilo queria dizer, e então olhamos para o ilusionista novamente, mas agora já não era o ilusionista que estava ali, mas o bobo da corte da carta, e quando olhamos para a carta de novo, lá estava o ilusionista. Eles haviam trocado de lugar, e, espantados com aquele truque, olhamos para o homem vestido de bobo da corte parado em nossa frente, mas, incrivelmente, já não era o bobo da corte, e sim o ilusionista novamente. Ficamos espantados com o que tínhamos visto, apenas no tempo em que olhávamos para a carta e para o homem ele era capaz de mudar de forma de uma maneira incrível. Luiza sorria por isso, sorria em empolgação tremenda porque amava aquele tipo de coisas, e eu tremia de medo.
- Agora veja novamente o que tem na carta – nos disse o ilusionista – Aliás, você, garotinho, tire a sua também – e estendeu as cartas para mim.
Obediente, eu tirei.
- Mantenha sua carta virada, garotinho. E você, menina, vire a sua e só revire quando eu ordenar. E quando isso acontecer vocês verão nas cartas aquilo que mais desejarem. O que mais desejarem, certo?
E fizemos o que ele pediu.
- Pronto, podem virar.
Na minha carta estava o retrato de Luiza, bela como sempre, um retrato perfeito da sua perfeição, o fruto da minha árvore estava esplendida. Mas na carta que ela segurava não era a minha foto que estava lá, mas o retrato do garoto da rua de trás. E ela sorriu. Sorriu de alegria genuína. E eu fiquei tão triste que nem sei por que escrevi estas coisas.

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O DIÁRIO DE UM ROMANO


Roma, 99 d.C.

Desde quando eu me lembro, as pessoas sempre foram escravas, fossem do marido, de algum senhor de terra, ou de qualquer um que estivesse acima dos demais. Pessoas com poder, influência, que tinham o sangue azul correndo nas veias, que possuía mando. Pessoas muitas vezes tidas como terríveis. Pessoas assim como eu.
Sempre estive ao lado do imperador Domiciano, eu era seu primo, além de seu conselheiro. Fui eu o primeiro a perceber que Roma estava se manifestando contra seu governo marcas deixadas pelo reinado de irmão, Tito, que em seu curto reinado – dois anos apenas – sofreu por pragas em Roma, a erupção do vulcão Vesúvio e o incêndio de Roma. Mas, ainda assim, Tito ficou marcado como um bom imperador, fruto da sua generosidade com as vítimas dos desastres e por várias construções públicas construídas a seu mando. Além disso, antes de ser imperador, ele havia sitiado e destruído Jerusalém, e matando vários judeus. Feito que o fez cair nas graças de Roma e lhe rendeu a construção do Arco de Tito, e que, acho eu, também lhe rendeu aquela morte por febre e um reinado tão curto. Mas, antes de morrer Tito inaugurou Anfiteatro Flaviano, ou Collosseum, mais conhecido como Coliseu, onde se encontrava antes a grande estátua do antigo imperador Nero, e o seu Palácio Dourado, ambos demolidos para a construção da arena. As obras tinham começado no tempo do imperador Vespasiano, e Tito proclamou a inauguração da construção que seu pai começara, mesmo as obras só vindas a ser acabadas depois de sua morte, na época atual, no reinado de seu irmão mais novo, Domiciano.
O espetáculo inaugural foi marcado pelos jogos dos cem dias, onde Tito tentando agradar o público e os deuses de Roma, matou cerca de nove mil animais e duas mil pessoas, homens e mulheres, com os seus jogos sombrios – rinhas entre animais, ou caça aos animais, chamado de “venatio”, execuções de criminosos e as batalhas entre gladiadores, as “muneras”. E para acompanhar esse fato, Tito instituiu novamente a política de seu pai; a do pão e circo, onde o Coliseu passou a receber multidões por dia para apreciar os sangrentos duelos entre os escravos obtidos em todas as colônias romanas, e entre as feras trazidas da África, assim desviando a atenção da plebe da real situação governamental de Roma, pois, dando ao povo espetáculo e a alimentação gratuita não haveriam revoltas ou questionamentos, o populacho iria adorar transitar entre os poderosos senadores e até mesmo perto da corte imperial romana. Só que a política do pão e circo trouxe bastante prejuízo aos nossos cofres, o gasto foi altíssimo, e como os grandes senhores não podem perder dinheiro, os valores dos impostos subiram absurdamente, e o que era para agradar passou a desagradar. O populacho ficou ainda mais furioso, muito mais que antes, bastaram alguns motins para que o caos surgisse, e foi aí que as coisas começaram a piorar; o povo cobrava mais espetáculo em troca de seus maiores custos com o governo, e se a vida dos outros nunca foi tão importante para nós, por que seria agora? Começaram a surgir então as verdadeiras batalhas sangrentas. Antes, quem dava a ordem de quem vivia e quem morria era o imperador, com um simples sinal de positivo ou negativo; agora, a multidão tinha voz, quem decidia quem morria ou vivia era o público com seus gritos e berros, a plateia nefasta, a orquestra do mal.
Meu dever era sempre aconselhar o imperador Domiciano em seu reinado, fazer com que seu governo não fosse como o de seu precedente, mas o imperador é um homem prepotente e totalmente egocêntrico de forma que, se não fosse do modo que ele queria nada era feito. E assim, como neste escrito, que talvez seja meu último, onde eu passo o que eu sei sobre Roma, eu fiz para outras pessoas, ajudei estrangeiros, livrei inocentes da morte sangrenta na arena sendo mutilados por animais ferozes, e por isso passei de conselheiro do imperador para prisioneiro condenado.
Hoje é meu último dia, provavelmente. Hoje eu entrarei naquela arena sendo visto por mais de cinquenta mil pessoas nas arquibancadas, desde os sentado no podium, os acentos de mármore feitos para classe alta, até os que estiverem sentados nos pórticos de madeira feitos para a plebe e as mulheres, e todos eles estarão sedentos por meu sangue. Serei fulminado, e esse será meu último manuscrito. E antes de morrer eu olharei o pulvinar, a tribuna imperial, onde vão estar o imperador e os senadores e magistrados, e demonstrarei minha convenção na fé, assim como muitos cristãos que morreram após serem jogados na arena para serem devorados por leões ou tigres famintos, eu não lutarei, pois sei que será em vão, não tenho nenhuma afinidade com espadas, então morrei de braços abertos, assim como Cristo morreu. Não sei se ressuscitarei assim como ele, provavelmente não, mas morrei de braços abertos, e que Deus cuide do meu espírito.
O sylvae, o cenário real criado para apresentação de episódios da mitologia romana, feito para deixar as coisas mais “emocionantes” está sendo preparado para mim. Não sei o que me espera, mas deve ser algo grandioso, porque o imperador Domiciano quer utilizar minha execução para mostrar que em seu reinado pessoas vinda da burguesia como eu também pagará pelo o que fizer. E assim ele mente para todos, e o pior é que muitos crerão e continuarão sendo lesados por suas palavras.
Eu já vi muitos morrerem no sylvae, quem entra lá está obrigado a representar algum inimigo de Roma – sempre um inimigo que nós vencemos – e esses que entraram no sylvae sempre foram mortos de maneiras horríveis, mas mitologicamente autênticas, como fazemos com os nossos inimigos, ou o que sempre foi dito nas lendas de Roma. Hoje é minha vez, e eu já posso ouvir os gritos da multidão que esperam para ver meu sangue e ter certeza que os burgueses não possuem sangue azul. Um líquido vermelho escorrerá por fendas em um corpo e manchará o barro castigado. Irei partir deste mundo por descumprir a vontade do meu imperador, por fazer o que eu achava que era certo, e quem ler estas últimas folhas deste diário saberá o quão sujo nós romanos somos, e eu espero que um dia o mundo saiba disso, assim como espero que este povo mude e encontre outra forma de viver. Só me entristece ter a quase certeza de que o território da minha morte um dia será considerado santo.



O diário intitulado como O Diário de um Romano foi encontrado um ano depois do Papa Bento XIV, no século XVII, consagrar e declarar o Coliseu um lugar sagrado.

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QUANDO O AMOR DÓI


A felicidade é algo incrível. Alguns dizem senti-la, diz ser a pessoa mais feliz do mundo, e que se sente completo. Para eles, a felicidade é como a água; ninguém consegue viver sem ela, um sentimento imortal. Outros, dizem que a felicidade é traiçoeira, enganadora, nos eleva além das nuvens e depois usa a gravidade contra nós. Esses, afirmam que a felicidade não é um sentimento, mas algo que acontece, um impulso da natureza para nos alegrar, e por mais longa que seja ela em sua vida sempre vai passar o vento que irá levá-la sem pedir permissão. Sempre. E, sinceramente, eu acredito em ambos.
Em toda minha vida eu sempre fui um idiota. Sempre. E por mais que eu me envergonhe de dizer isso, é a minha realidade. Eu era um rapaz atraente, inteligente e com boas condições. Talvez tudo o que a maioria das mulheres procurasse, mas eu nunca aproveitei quem eu era, ou nunca soube como aproveitar, se eu sempre fui um idiota, foi por minha própria culpa. Minhas conversas sempre foram sem graça, eu não sabia gerar e prolongar uma prosa, então acabava sendo o excluído da turma, sem trocar um papo com alguém, ou mesmo ter um amigo. Nunca usei drogas, se muito, foram apenas alguns copos com cerveja, e mesmo sendo careta, insolado e sem graça havia uma coisa em mim que eu gosta: eu era romântico. A única namorada que tive pode falar o que for de mim, menos que eu não era romântico e a tratava bem. E é justamente essa minha namorada que faz essa história ter sentido. A minha história ter sentido.
Sabrina sempre foi minha colega de classe, desde o colégio, e, ironicamente, na faculdade também, sendo aí que eu reparei nela e ela em mim. Ela era uma moça educada, humilde, carinhosa e divertida. Não possuía uma beleza extraordinária, mas tinha seu charme. Só havia uma coisa nela que não me agradava: ela era comprometida. Mas minha sorte passou a mudar quando aquela mulher de longos cabelos negros se chegou a mim chorando, perdida do que fazer.
- Ele não podia ter feito isso comigo. Não podia! – disse-me, com os olhos inundados.
- O que aconteceu? – perguntei, mas já desconfiava a resposta.
- Eu peguei meu namorado com outra – disse-me ela, bem como eu já imaginava, pois somente quando ela discutia ou brigava com seu namorado era que ela ficava naquele estado. Ela o amava muito, e ele também dizia que a amava. Mas ele mentiu. E para piorar tudo, a traição tinha sido a própria prima dela.
Decepções a parte, minha felicidade começou ali, quando ressentida pela traição do seu ex-namorado, ela me beijou. Naquele dia eu não me lembro de ser dono das minhas ações, não me lembro de controlar minhas emoções, tudo estava como eu sempre sonhei que estivesse, e quando me dei por mim nós já estávamos no quarto de um motel fazendo amor. Desde então, eu e ela estávamos juntos. Não mais apenas como amigos, mas como namorados. Os dias se passaram até que se tornaram meses, e nós continuávamos unidos, felizes, vendo os meses se tornarem anos e anos. Nosso amor era forte, abrasador, fervia entre nós, não conseguíamos ficar longe um do outro. Nosso romance era invejado, querido, abençoado. Nenhum de nós dois conseguia entender como aquele amor era tão impressionante. Ah o amor! Foi por Sabrina que fiz as maiores loucuras da minha vida, coisas que nunca pensei que faria um dia. Coisas boas, coisas ruins, mas não importavam desde que fosse com ela.
- Amor – chamei sua atenção um dia pela manhã. Ela escolhia uma roupa para ir ao trabalho, e após eu ter chamado sua atenção, ela me olhou com seu lindo olhar.
- O que foi, amor? – disse-me.
- Eu estava pensando... sabe, nós já estamos há bastante tempo junto, será que...
- Será que já não está na hora de oficializarmos nosso relacionamento?! É isso que você quer dizer, não é? – ela foi direta, sabia o que eu queria. E eu gostava por sermos sempre assim um com o outro.
- Isso mesmo, amor – confessei. – Será que já não está na hora?
Ela me olhou com um olhar profundo, e depois, por detrás dos seus cílios vastos, seus olhos desviaram a visão para a cama. Não falou nada.
- O que foi? – perguntei. – Não gostou da ideia?
- Não é isso.
- E o que é então? Pode me dizer. Ah já sei onde foi que eu errei. Eu não devia ter dito isso a você numa situação dessas. Devia ter te levado para jantar, ter lhe feito uma surpresa. Desculpa. Por favor, me perdoe.
- Não precisa se desculpar, amor. Não precisa – disse-me, sincera. – Você não fez nada de errado.
- Então ouça o que vou lhe dizer. – E nessa hora eu me ajoelhei. Ela pensou que eu iria fazer um pedido de casamento, mas, na verdade, apenas a chamei para jantar à noite, quando chegássemos do trabalho. – Você aceita?
- É claro que eu aceito, seu bobo – foi a resposta que obtive. E, feliz, fui trabalhar.
Naquele dia, nada poderia ser melhor que ouvir o “sim” de Sabrina quando eu a pedisse em casamento. O que eu sentia por ela parecia apenas aumentar a cada dia. Antes, eu era apenas um qualquer vivendo nesse mundo, mas depois que a conheci eu era forte, eu era querido, eu era especial. Acordar com ela era um sonho que eu vivia, nada era tão perfeito quanto acordar sentindo seu cheiro, com os pássaros cantando do lado de fora e o sol entrando pela fresta da janela. Nada.
O trânsito não me estressou naquele dia. Nem a chuva, ou a correria de mais um dia de trabalho. Alguns amigos disseram que eu estaria assinado um atestado de escravidão, que eu estava ficando louco, pois Sabrina nunca tinha dito nada sobre casamento e eu queira me oficializar com ela, sendo que tudo o que a maioria deles esperavam de uma mulher era nunca precisarem casar, mas eu, romântico como era, estava decidido que me casaria com aquela mulher e seria feliz junto com ela.
Eles tentaram me levar para uma despedida de solteiro, mas rejeitei, pedi para ser liberado mais cedo do trabalho para poder fazê-la uma surpresa. Passei numa floricultura para comprar suas flores prediletas e fui até a empresa onde ela estagiava, pronto para lhe surpreender.
- Hey, você por aqui, rapaz – disse um primo de Sabrina ao me ver chegando à empresa. – O que veio fazer aqui? – perguntou-me.
- Vim fazer uma surpresa para sua prima. Diga-me, onde posso encontrá-la?
- Como assim, cara? Sabrina não veio hoje, disse que iria ter um compromisso.
- Compromisso?
- É. Tá surdo? Ela me ligou mais cedo e me disse isso.
- Eu vou a pedir em casamento hoje. Mas esse compromisso será à noite.
- E você já não sabe como são as mulheres, rapaz. Muito provavelmente ela deve ter ido a um salão, ter comprado roupas novas, um perfume diferente. Tudo para te agradar.
- É, acho que você tem razão. Vou para casa. Irei ficar esperando por ela – disse, sorrindo, e fui para casa.
Acelerei o carro para chegar logo e diminuir a tensão. As rosas exalavam um aroma que me fazia sentir o toque delicado de Sabrina sobre meu corpo. E ao dobrar a esquina vi seu carro estacionado frente a casa. Estacionei, peguei o buquê, o cartão, o chocolate e subi rapidamente os degraus da varanda, louco para vê-la, dar-lhe um beijo amoroso. Mas quando abrir a porta...
- Mas o que...
...Vi a pior cena que poderia ter visto em toda minha vida. O amor da minha vida, a mulher que eu tanto amava, estava bem ali, na minha frente, conjugando com o seu antigo ex-namorado.
A raiva me subiu à cabeça, todo meu corpo estava estremecido. Eu não sabia o que dizer, nem mesmo o que fazer, meus olhos buscaram o jarro de vidro que estava bem ao meu lado. E quando a frase “eu posso explicar” foi dita por ela foi que eu consegui despertar do trauma que aquela visão tinha me causado. Tentei impedir que as lágrimas me chegassem aos olhos, mas não consegui, elas rolaram incessantemente, só que não era lágrimas de tristezas, e sim de fúria.
- Eu te amei, sua vadia – berrei, expelindo saliva entre as palavras.
- Calma – ela disse. Iria dizer mais alguma coisa, mas não deixei.
- Como pode me pedir calma, sua prostituta? Como? – Olhei novamente para o jarro, minha mão tremia, e então segurei-o.
- Pense no que vai fazer, amor – ela tentou me alertar. Seu companheiro não teve coragem de mover um músculo sequer. Ele chegou a me conhecer, antes, e sabia que eu era um rapaz gentil. E nada é mais perigoso que um homem gentil irado.
 O jarro estava ali pronto para vitimar, mas então o larguei e fui embora para não acabar fazendo uma besteira, algo que sabia que depois eu iria me arrepender de ter feito.
Peguei meu carro e sair em disparada, totalmente descontrolado, chorando raiva. Como ela pôde ter feito àquilo comigo? Por que, se eu nunca tinha feito nada que a magoasse? Como ela pôde ter tanta coragem? E por que logo com o antigo namorado? Foi com essas perguntas na cabeça que acabei batendo de frente com um ônibus, acordando depois de dois meses em coma descobrindo que estava paraplégico e sabendo com extrema amargura que a mulher que eu tanto amava ainda tinha me enviado o convite do seu casamento com outro homem. Até hoje eu não consigo entender como ela fez tudo isso comigo.
Por quê?

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PRISIONEIROS


Philcon era a prisão mais bem vigiada de Monfort, o reino mais militarizado de todo o mundo de Rishima. Tyson já estava lá há noves anos. Ele havia sido pego tentando arrombar uma das residências do prefeito, e, por azar, foi pego bem no momento em que tentava arrombar a porta. Após um julgamento, ele havia sido condenado a nove anos e seis meses de prisão. A sentença foi muito maior do que geralmente deveria ser, ele sabia que havia sido injustiçado naquele dia da sentença, muita gente fazia coisas semelhantes e não era condenado com tanto rigor, com certeza tinha algo a ver com prefeito. Tyson sabia que a tentativa de furto era uma jogada arriscada, jurou que se conseguisse fazer o que tinha ido fazer, abandonaria a vida criminosa, pois já teria dinheiro suficiente para cuidar da filha. Só que tudo deu errado; ele foi pego e agora estava preso e longe de sua pequena filha, e já havia se passado cinco anos desde a última vez que a tinha visto.
- Falta pouco para você sair daqui, Tyson – disse Tex, seu companheiro de cela.
- Falta pouco – Tyson concordou. – Mas eu tenho de me manter vivo até lá.
Não era possível saber se era noite ou dia. A solitária era um lugar escuro, úmido e fedorento. Tyson mais Tex haviam ido parar lá por ter se envolvido em uma briga. Os outros envolvidos foram livrados do castigo por serem aqueles que os guardas corruptos colocavam em patamar acima dos outros prisioneiros.
- Sabe que mato qualquer um que se aproximar de você, né? – Tex não enxergava o outro, tateou meio que o chão meio que a parede procurando tocar em Tyson, e não achou.
- Eu posso me cuidar, Tex.
- Você deu sorte de eu ir com a sua cara, parceiro. Senão, você estava ferrado. Você acha que quando sairmos daqui nós não vamos ter mais problemas?
- Eu não posso deixar que a minha pena aumente. Qualquer oportunidade que eles tiverem de me fazer morrer aqui dentro, eles irão querer aproveitar.
Philco era um lugar onde os piores criminosos eram jogados. Lá todo tipo de facínoras eram encontrados. Psicopatas buscavam suas próximas vítimas todos os dias, a cadeia era vigiadíssima, mas não tinha tanta segurança interna, a preocupação era que os prisioneiros não escapassem, lá dentro, eles que se entendessem. Tinha de saber o que falar, com quem falar e quando falar. O mesmo servia para ouvir, as pessoas diziam coisas, e ouvir essas coisas podia ser a causa da próxima.  Quem era quem era difícil saber, tinha de chegar devagar, saber relevar provocações para não morrer no mesmo dia. Quem entrava naquela prisão deixava o futuro à sorte. A loucura afetava vários, e os que não chegavam a insanidade ou era porque possuía uma esperança muito forte e uma grande motivação ou era tão ordinário que passava a querer ser o comandante do local, ser o maioral, aquele que manda e desmanda em tudo. E Tyson criara uma rixa com Onoxx, um dos prisioneiros privilegiados pelos guardas.
- Quando sairmos da daqui de dentro – disse Tex -, aposto que terá alguém na espreita para tentar nos matar.
- Não quero que você se envolva em nada, tá me ouvindo?
- Sua rixa é minha também a partir do momento que eu me envolvi naquela briga, seu idiota. Quando eu enfiei aquela faca no pescoço daqueles miseráveis, eu estava comprando sua briga.
- Sabe que eu não te pedi nada. Eu teria me virado muito bem sozinho.
- Eu sei. Eu fui muito idiota mesmo. Era para eu ter deixado que eles te colocassem de quatro e enfiasse o pênis em seu traseiro. Mas não, eu fui tolo o suficiente para te salvar. Agora você está próximo de sair daqui, enquanto eu vou permanecer nesse inferno, e provavelmente morrer.
Tex tinha parado em Philcon por ter assassinado a própria família. Quando pequeno, ele era molestado pelo próprio pai e também pelos irmãos. Até os dezesseis anos sofrera as agressões, até que chegou o dia em que não aguentou mais e decidiu dar um basta. No meio da noite, enquanto seu pai após ter o violentado já tinha ido dormir, Tex pegou uma machadinha e foi até o quarto do velho. Com uma machadada no pescoço ele matou o pai sem dar chance para que ele gritasse. Estava irado, fora de si. Observou sorridente a morte dolorosa que o pai tinha, depois foi ao quarto dos irmãos. O primeiro alvo foi o mais velho, que também com uma machadada no pescoço foi morto. Os outros dois acordaram e Tex também os matou. No final, ele estava todo banhado em sangue, segurando a machadinha. Assustado com o que tinha feito, saiu da casa. Os vizinhos chamaram a milícia para verificar o caso. E em estado de choque Tex foi levado preso.
Na prisão alguns outros prisioneiros tentaram molestá-lo. E revivendo o passado ele deu um jeito de matar dois deles. Motivo no qual foi transferido para Philcon, a prisão sem saída.
- Quanto tempo acha que sobreviveremos quando sair daqui, da solitária? – disse Tex.
- Um. Talvez dois.
- Tá de brincadeira? Acha isso mesmo? – a escuridão não deixava que Tyson visse a cara de espanto que Tex tinha feito após sua resposta.
- Você é um dos mais perigosos que essa prisão abriga, Tex. Vai ficar com medo agora? Para alguém que já matou várias pessoas, você tá muito afeminado. Eu vim parar aqui por tentativa de roubo, você está aqui por assassinato. Uma morte a mais ou a menos não irá alterar nada em sua ficha.
- Você também já matou, Tyson. Não vem com essa de que é um coitado que está sendo injustiçado. Eu já vi você matando, saiba disso.
- O primeiro homem que eu matei foi aqui dentro. Esse lugar nos abriga a fazer coisas que nós não queremos.
Do lado de fora, passos se aproximavam da porta da solitária. Eles já não escutavam aqueles passos há dois dias.
- Parece que chegou a hora – disse Tex.
O guarda fez um barulho com a penca de chaves, depois deu dois chutes na porta de ferro da sela.
- Eu vou abrir a sela – disse o carcereiro -, se vocês tentarem alguma coisa, irão ficar aí mais uma semana, tão ouvindo?
Os dois responderam positivamente.
A sela foi aberta. A claridade vinda aos olhos incomodava bastante. Eles colocavam as mãos tapando um tanto da visão.
- Vamos. Saiam logo daí! Ou querem ficar aí o resto de suas vidas?
O primeiro a sair foi Tex, Tyson seguiu logo atrás. A sensação de que alguém estava na espreita pronto para matá-los era constante. A cada passo que davam eles achavam que poderia ser o último. O carcereiro ia logo atrás deles, mais três esperavam mais a frente. O caminho ia se estreitando à medida que iam andando pelo corredor. A tocaia mais perto, e mais perto.
E então, nada aconteceu.
Eles chegaram à cela sem que ninguém tentasse lhes fazer algo. No caminho ainda viram os homens de Onoxx acompanhando-os com o olhar. Balançaram a cabeça como se os cumprimentassem, mas eles sabiam que aquilo não significava um cumprimento, e sim uma ameaça.
- Temos de nos preparar para eles, Tyson – Tex caminhava de um lado a outro na cela. Ele possuía alguns punhais feitos de modo rústicos, mas que serviriam para perfurar o corpo de qualquer uma que atentasse contra sua vida.
Os prisioneiros nas celas vizinhas faziam uma algazarra; berravam, batiam com canecas contra as barras-de-ferro da cela, xingavam incessantemente. Quando eles passaram, os prisioneiros os ameaçaram, juravam que eles não durariam até a manhã seguinte. Era como se toda a prisão tivesse sido jogada contra eles.
- Existe uma pessoa que pode nos ajudar, eu acho – disse Tex.
- Quem? – perguntou Tyson, ganhando esperança.
- O Castrado, Tyson. Vou tentar falar com ele.
Tex se chegou para o canto da cela. Castrado era um dos poucos amigos que ele tinha na prisão. Castrado sabia de muita coisa que se passava ali dentro, ganhava a confiança dos outros prisioneiros pagando algumas moedas pelas informações preciosas.
- Castrado? Você tá aí?
- É claro que estou, seu idiota. Onde mais eu estaria? Em casa? – Castrado falava num sussurro, bem baixinho, para ninguém mais escutá-lo. 
- O que aconteceu no tempo em que ficamos na solitária? – Tex também falava baixo, aproveitava o barulho que os prisioneiros faziam para fazer com que eles mesmos ouvissem a conversa.
- Muitas coisas aconteceram. Coisas suficiente para eu não ter tempo de ficar te explicando.
- O que Onoxx fez nesse tempo?
- Deixa eu te falar só uma coisa, companheiro. Suas cabeças valem ouro aqui dentro agora, tá entendendo? Fique ligeiro se quiser continuar vivo. Você e seu amigo.
Tex se virou para Tyson, que tinha ouvido a conversa, e olhou para os punhais. No fundo eles sabiam que por mais que lutassem não teriam como sobreviver. Eram muitos na cadeia que queriam as suas mortes. E agora que valiam ouro, os prisioneiros iriam como urubu para cima deles na primeira oportunidade que tivessem.
- Hei. Tex, Tyson, se aproximem! – a voz era de Castrado.
- O que foi? – perguntou Tyson, se aproximando ao canto da cela.
- Eu posso tirar vocês dois daqui.
Os dois se entreolharam criando um tanto de esperança.
- Como? – perguntou Tyson.
- Na verdade, eu não tenho como tirá-los. Eu só sei uma forma que vocês podem utilizar. Talvez seja a única chance de vocês continuarem vivos.
- O que temos de fazer?
- Calma – disse Tex. – Se você sabe como sair daqui, por que nunca tentou?
- Vocês sabem o que acontece com quem tenta fugir da Philcon e é pego, Tex. Eu não quero morrer. Por isso eu tenho de saber se realmente é possível sair desta prisão. E qual é o único modo de saber? Testando.
- Mas se nós formos pegos, sua rota de fuga será achada e aí vão colocar guardas lá também.
- Com isso, eu vou saber que eu estava certo em testar antes de utilizar.
- Onde está seu companheiro de cela? – disse Tyson.
- Ele é a chave para a saída de vocês desse local. Onde se viu colocar um anão em uma sela de pedra. Eu consegui alguns materiais necessários para ele poder trabalhar, e em pouco tempo ele conseguiu fazer uma rota subterrânea que leva para fora das muralhas. Só que eu não confio nele, não confio em ninguém que nunca dorme. E aquele miserável tem uma doença que não permite que ele durma. Então tenho de testar pra ver se ele fez um bom trabalho. Depois eu vou poder usar a rota para sair daqui quantas vezes eu quiser.
- E por que você estaria no ajudando?
- Ah, aí você chegou ao ponto onde eu queria chegar. O anão diz que a rota ainda não está acabada, mas eu tenho quase certeza que ele tentará fugir ainda hoje. E fugindo, ele fará alguma coisa para que os guardas fiquem sabendo e descubra o buraco em minha cela. E como eles não sabem todos os prisioneiros de cela, pois eles não ligam para nós, aposto que nem repararão na ausência do anão, eles vão achar que fui eu quem criou a passagem. Mesmo que eu diga que foi o anão, eles não irão refletir no assunto. E eles achando que eu estava tentando fugir, me matam na mesma hora.
- A verdade é que você falou e falou, mas não nos deixou claro o real motivo de nos ajudar.
Castrado bufou do outro lado da parece.
- Você tem de melhorar e muito a sua percepção criminológica, Tyson. Se eu falo que vocês deverão fazer algo por mim, e depois digo que o anão pode me ferrar, você ainda me diz que eu não deixei claro o que quero que vocês façam? Lógico que quero a morte dele.
- Isso vai ser fácil – disse Tex. – Pode deixar com a gente.
- Agora fiquem ligeiro por aí. E sobrevivam até daqui a pouco, quando teremos o breve tempo fora da cela.
Tyson se jogou na palha que era sua cama. Tex se encostou, cruzou os braços e encostou a sola de uma das botas na parede. Ele balançava a cabeça como lentamente, como se estivesse ouvindo boa música. A cela fedia a mofo e umidade. E eles fediam a catinga, suor e excrementos. A situação deles era deplorável. Estavam magros, cheios de barba na cara, os dentes apodrecidos. Fora os privilegiados, a maioria das pessoas em Philcon eram assim. Antes, não eram apenas os dois na cela, existia outro prisioneiro. Mas este morreu de uma doença que fazia a pessoas tossir bastante e colocar sangue pra fora. As tosses eram terríveis, e não demorou muito para levar o prisioneiro à morte.
Aquele lugar era um local insistentemente terrível.
Da cela ao lado, os prisioneiros mandavam suas ameaças. Eles não ligavam, agora que tinham a chance de sair dali, os ânimos se tranquilizaram mais.
- E eu que pensei que iria sair daqui como um homem livre – disse Tyson.
- Melhor sair daqui como um homem foragido do que morrer aqui como um prisioneiro. Se você quiser ficar e tentar a sorte pode ficar. Eu que sei que vou embora desse lugar.
- Acaso ouviu dizer que quero continuar aqui?
- Não interessa. Levanta que nossa chance se aproxima.
Vários guarda surgiram para abrir as celas. Estavam armados de espadas longas, vestiam armaduras e usavam escudos. Alguns faziam mira com os rifles, loucos para poder puxar o gatilho. Parte dos guardas usava um elmo padronizado com a marca da caveira. Se algum engraçadinho tentasse fazer qualquer coisa fora dos padrões, seria morto sem nenhuma hesitação. Aqueles homens nunca hesitavam em tirar uma vida de quem eles achavam que mereciam morrer, eles sempre pareciam com sede de sangue, esperando apenas um vacilo, uma oportunidade para matar. E fazê-los achar que alguma pessoa merecia morrer era fácil.
- Vocês dois – disse o guarda apontando Tex e Tyson. – Bora. Movimentação! Rápido!
Os dois começaram a seguir o guarda. Uma fila se formava para seguir andando, e ambos entraram na fila. Com os guardas apontando os rifles ninguém tentaria matá-los. Ao menos assim eles esperavam. Mas o que eles não sabiam era como iriam fazer para entrar na cela de Castrado sem que os guardas notassem. Tinham pouco tempo para ficar fora da cela. E nisso tinha dois pontos negativos. O primeiro era que, pelo o que eles estavam percebendo, não teria como eles se livrarem daqueles guardas para ir à cela de Castrado. O segundo era que naquele pouco tempo fora da cela, eles tinham certeza de que alguém iria tentar matá-los.
Tyson já percebia movimentações estranhas, já se tocava no que aconteceria assim que os guardas se afastassem um pouco mais. Escondia o punhal por debaixo do macacão, na parte inferior, pronto para sacá-lo assim que o primeiro fosse contra ele.
- Vocês ficarão aqui até a segunda ordem. Estão entendendo? – barreou um guarda.
Todos responderam positivo.
O sol queimando a cabeça, o céu azul com poucas manchas cinza. Não existiam ventos para refrescar os corpos, o dia era bastante quente. O ar era árido. Tex mais Tyson percebiam as aproximações dos outros prisioneiros. Tyson levantou a perna para pegar o punhal, disfarçadamente. Tex guardava dois do punhais na cintura. Não havia revista na prisão, os guardas acreditavam que os prisioneiros não seriam tolos o suficiente para tentar algo contra eles. Sabiam que os prisioneiros possuíam armas, mas isso não importava, já que seria usada contra eles mesmos.
Os guardas começaram a se afastar.
- Vocês vão morrer agora, seus vermes – disse um prisioneiro desdentado, se aproximando devagar, segurando uma adaga.
Os guardas se afastavam parecendo que estavam fazendo aquilo de propósito. Tex e Tyson já seguravam os punhais, com os ânimos elevados. Vários outros também começaram a mostrar suas armas e suas vontades de tirar vidas. Onoxx não estava presente no pátio. Com certeza estava em sua cela privilegiada, pensou Tyson. Mas os homens dele estavam. E portavam armas bem feitas, que tiraria suas vidas facilmente. Sentiram a sensação de que a morte era certa. Seriam trucidados como porcos no abate.
Tyson segurou o punhal com mais força e já se preparava para tentar abrir caminho e correr. Mas então, ele sentiu uma adaga beliscar seu pescoço e braços envolver seu corpo, impedindo seus movimentos.
Era Castrado.
Tex foi seguro pelo anão, que chutou seu joelho, fazendo cair, e depois colocou a machadinha em seu pescoço.
- Eles são meus! – disse Castrado.
Depois ele sacou uma pistola e atirou para cima. Aquilo serviria para fazer com que os guardas voltassem. Eles sabiam que os prisioneiros possuíam armas, mas armas de fogo era algo que eles desconheciam que os prisioneiros tivessem. E após o estampido, não demorou muito para que eles retornassem apontando seus rifles e já desembainhando suas espadas.
- Se afastem, seus bostas! – disseram os guardas. – Saiam da frente!
Os prisioneiros abriram espaço. O anão se afastou deixando apenas Castrado segurando a pistola com as mãos para cima e Tyson mais Tex deitados no chão.
Os guardas por pouco não disparam seus rifles. Castrado foi seguro por três guardas e levado para a solitária. As coisas aconteceram muito rápido, nem Tyson nem Tex tinha total certeza do que realmente aconteceu. Não sabiam se estavam livres da morte ou não. Todos haviam recebidos ordens de voltarem às celas. O anão piscou para os dois, abaixou a cabeça e continuou andando.
- Não vamos para nossa cela, Tex – Tyson falou baixo, enquanto andava.
- Como assim? – disse Tex, em mesmo tom.
- Vamos para a cela de Castrado. Os guardas não se importam em qual cela estamos desde que estejamos dentro de uma. Não vamos para a nossa, mas para a de Castrado e o anão.
- E de lá, nós buscamos nossa liberdade.
- Isso mesmo. Buscaremos nossa liberdade.
Como haviam muitos prisioneiros, eles andavam em passos contidos. Ainda temiam receber golpes traiçoeiros, mas após os guardas descobrirem que havia armas de fogo entre os prisioneiros, eles estavam com raiva, só esperando um movimento errado para disparar seus rifles. Ninguém era tão burro de tentar tirar a vida de alguém para ganhar dinheiro sendo que logo depois iria perder a sua.
Quando chegaram próximos à cela observaram os guardas. Viram que eles não estavam ligando em qual cela eles iriam entrar. O anão passou devagar pela frente deles.
- Não pense que vou lhes permitir a chance de mim matar – disse. – Não sou idiota como vocês pensam. Trocaremos de cela. Vocês ficarão na minha e eu na de vocês. Não tenho pressa pra sair daqui. E também quero testar minha rota de fuga.
- Como sabia que nós iriamos te matar? – disse Tex.
- As vozes ecoam nas rochas, e guiam informações aos ouvidos de um anão.
- Como fazemos para achar a passagem? – perguntou Tyson.
- Puxem os tijolos próximos às camas.
Tyson mais Tex entraram na cela. Depois de um tempo, todos os prisioneiros estavam dentro das celas e os guardas já tinham ido embora. Tyson encontrou os tijolos que o anão se referira, e o puxou. Foram retirando os outros até que se formou uma pequena passagem. E não acreditavam no que estavam vendo. Era realmente um caminho. A esperança foi crescendo dentro de seus corações.
- Eu vou na frente – disse Tyson, já se embrenhando pelo buraco.
Tex deu de ombro e seguiu logo atrás. O caminho era grande o suficiente para que o anão, que era largo, conseguisse se arrastar. Então para eles era ainda mais fácil.
A luz mais à frente. A sensação de liberdade se aproximava. Talvez aquilo tudo ensinara a eles o que era ser livre. Eles já podiam respirar um ar melhor.

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DESPRAZERES


- Te espero para jantar hoje? – perguntou Karen com o tom triste que já carregava há tempos em sua voz sempre que se referia ao marido.
- Quantos outros dias vou ter de te dizer que não? – Carlos pegou uma maça e a mordeu olhando bem na face de sua esposa, lançando sobre ela um olhar agressivo. – Quantas outras vezes eu vou ter de te dizer que entre nós já não existe mais nada?
Karen não achou palavras para fazer frente à tristeza que se instalou em seu coração no momento em que seu marido lhe disse aquilo, a única coisa que conseguiu fazer foi fungar o escorrimento imediato do nariz, mas não o rolar das lágrimas em seu rosto. Cada vez que seu marido lhe dizia palavras como aquelas ela sentia seu corpo cair num espaço sombrio, sem fim. Encarou-o e enxergou o olhar cínico que ele lhe lançava, passou a costa da mão sobre a face e deu-lhe as costas.
- Por que você se virou assim? – disse o homem. – Por que você se virou assim? – gritou. – Não estávamos conversando? Ande, olhe para mim! Olhe para mim!
Karen não queria se virar, não queria demonstrar sua fraqueza, as lágrimas que rolavam em sua face, queria que seu marido fosse logo embora, queria ficar apenas sozinha. Mas ele insistia para que ela se virasse, e ela se manteve de costas para ele até o memento em que ele segurou seu corpo apertando seus braços contra o tronco e a virou com um movimento brusco.
- Quando eu estiver olhando para você, olhe para mim! – disse ele, puramente agressivo, sacudindo-a com força. – Eu já te disse isso.
- Me solte! – berrou ela, tentou se livrar das mãos que lhe a machucava, mas era frágil. – Você está me machucando, Carlos. Tá doendo. Me solta!
Ele a estapeou e logo em seguida a soltou por cima do botijão de gás, fazendo-a se chocar sem proteção alguma contra o botijão, e depois rolar para o lado, com o supercílio aberto. O sangue aproveitou a fenda em sua pele para deslizar por sua face. Desesperou-se em prantos, na mente surgiram todas as lembranças das pessoas que te disseram que não era para casar-se com aquele homem, mas que ela, infelizmente, não tinha dado ouvidos. Tentou se erguer, caiu por ainda estar tonta. Do chão, procurou o marido com os olhos, e não o encontrou, ele tinha a deixado naquela situação e partido, muito provavelmente para encontrar a amante.
Aquela não tinha sido a primeira vez que ela apanhava, os socos, tapas e pontapés sofridos já estavam em sua rotina. Arrastou-se e se encostou à parede. Ouviu a porta de casa abrir, pensou ser ele que voltava para agredi-la novamente. Tremeu quando ouviu os passos se aproximar, se encolheu no canto, mas então notou que os passos eram leves e rápidos; era sua filha que chegava da escola e corria em sua direção. A menina possuía um largo sorriso no rosto.
- Cheguei, mamãe – disse alegremente.
Mas, quando viu sua mãe no chão, encostada, sangrando, correu em desespero para acudi-la.
Aquele era o principal motivo de Karen ainda aturar todas as agressões de Carlos; a filha do casal, a pequena Pietra. Ela temia pela filha mais que a própria vida. O miserável já tinha ameaçado matar a menina caso ela decidisse ir embora. E criar coragem para se afastar daquele maldito homem era ainda mais complicado para ela pois a menina era apegada ao pai, que a tratava muito bem, chegando a parecer nem ser a mesma pessoa. Karen temia entregar seu marido a polícia e fazendo sua filha sofrer por sua ação. Temia pela vida das duas. E chorou no colo da filha, que a envolveu nos braços, invertendo os papeis.
- O que aconteceu, mamãe?
Karen abraçou a filha, seu sangue manchava a blusa alva da criança.
- Eu escorreguei, filha. Estou assim por ser uma idiota e não perceber que o chão estava molhado. Como foi a aula? Venha, vá tomar banho para almoçar, fiz lasanha para você.
Levantou com a ajuda da filha, enxugou as lágrimas e, percebendo que sangrava demais, foi cuidar da ferida. A menina correu para o quarto, tinha acreditado na história de sua mãe. Karen viu o próprio reflexo no espelho do banheiro e voltou a chorar. Sentiu enjoo, na alma e no corpo, e sentou na privada com tristeza, olhando para a embalagem do teste de gravidez que tinha comprado.
A vizinha chegou à sua casa ainda naquele dia. Ao abrir a porta a proprietária percebeu o desagrado no rosto da recém-chegada, que lhe abraçou, dando-lhe o colo amigo que precisava.
- Mais uma vez, Karen? – sua amiga falou com intrepidez, reprovando-a. – Mais uma vez, Karen?
Ela balançou a cabeça.
- Karen, o que você está fazendo consigo mesma? Você morre aos poucos vivento aqui com esse homem. Você fica cada vez mais irreconhecível.
- Não é por ele, Diana, eu temo por minha filha.
- Nada de grave aconteceria a sua filha, se você entregasse esse homem à polícia, Karen. Sua filha terá de entender. Conte qualquer coisa a ela até que ela possa saber a verdade. Pense que isso que acontece com você hoje, pode acontecer com ela amanhã. E qual exemplo você terá dado a ela, ficando aqui e sofrendo? Entregue esse homem à polícia. Ele seria preso.
- E depois? – Karen gritou as palavras. – O que ele faria com a gente depois? E se ele não for preso?
- E você prefere ficar sofrendo assim? Apanhando todos os dias? Sendo destratada e traída?
- Eu não sei o que fazer. Eu o temo. Ele é perverso. Ele ameaçou que se eu o deixasse ele mataria minha filha. Você sabe o que é isso? Aposto que nunca passou por uma situação dessas, seu marido sente amor por você. Você não sabe o que é sofrer, viver com alguém que pode te tirar o que você tem de melhor a qualquer momento. Você não sabe!
Diana ignorou insultos de sua vizinha, sabia que o desespero lhe causava aquele comportamento, pensava que qualquer pessoa naquela situação faria o mesmo. Mas resolveu agir.
- Se você consegue aturar isso, Karen, eu não consigo saber de uma coisa dessa e ficar parada, sem fazer nada. Eu vou ligar para seu irmão. E vou denunciar seu marido.
A anfitriã segurou a visita pelos braços implorando para que ela não fizesse aquilo, mas, mesmo com todo medo do mundo de estar fazendo algo que prejudicaria a amiga, Diana se desvencilhou dos braços da amiga e ligou para seu irmão, passando tudo o que sabia para ele, causando uma surpresa tremenda, pois Karen escondia de seus familiares todas as agressões que sofria. E vendo a amiga em desespero, chorando, lhe xingando, Diana ligou logo em seguida para a polícia.
- Deixe de ser idiota, Karen, senão quem irá meter a mão em sua cara sou eu. Vamos sair daqui. Vamos para minha casa. Pegue sua filha e vamos.
- Não!
- Deixe de ser idiota, mulher. Temos de garantir que seu marido não a faça mal. Pense em sua filha.
Mesmo relutante, Karen cedeu. Pegou dinheiro, documentos, sua filha e partiu para a casa da amiga.
- Ele não conseguirá entrar lá – disse Diana.
- Tomara. Ele será capaz de me matar, caso me encontre.
- Ele não vai te encontrar, fique tranquila.
Acolheram-se no apartamento. Karen ou viu o celular tocar várias vezes, o identificador de chamadas mostrava que era o pessoal de sua família, e ela ignorava todas e quaisquer ligações que recebia. Uma mensagem de texto também lhe foi enviada, e ela leu, pois o que ela não queria era ouvir as vozes de seus parentes a reprovando por tudo o que tinha feito, ou deixado de fazer. A mensagem era de seu irmão, dizia que ele estava se dirigindo para encontrá-la. E logo em seguida outra mensagem lhe foi enviada, e esperando que fosse algum de seus parentes ela visualizou a mensagem, levando um susto quando viu que seu marido era quem lhe tinha encaminhado a mensagem. Arremessou o celular longe, sem ler a mensagem. Correu desesperada para agarrar a filha e a viu falando no celular, sorridente.
- Largue isso, Pietra! – ordenou. Tomou o celular da mão da menina assustando-a, viu que era com o pai que ela conversava, desligou o telefone e tomou a menina no colo.
- Papai disse que já vem pra cá, mamãe.
Karen correu para avisar a Diana, mas a vizinha já estremecia com a visão que tinha da janela. Encostou também para observar, e viu que Carlos tinha descido do carro e se aproximava da casa com uma arma na cintura, exposta sobre a camisa.
- Corra para o quarto, Karen, e tranque a porta.
Pietra se assustava sem saber o que acontecia, se agarrou a mãe. Karen correu em direção ao quarto, mas parou quando a pistola foi disparada contra a maçaneta da porta e logo depois arrombada por um pontapé.
Carlos estava com os olhos vermelhos, respirava forte. E apontava a pistola contra ela e sua filha. Karen estremeceu, chorando em desespero, sua filha também. Diana ficou estatelada, sem se pronunciar ou esbouçar qualquer reação.
- Por favor, Carlos, não faça isso. Por favor, Carlos. Não! – gritou. O terror foi grande quando ele engatilhou – Não!
Ele apenas apontava a arma, engatilhada, mas sem disparar o projétil. O ódio exalava em seu corpo.
- Eu quero minha filha, sua vadia. – E foi se aproximando apontando a arma para a mulher e às vezes para Diana. Tomou a filha das mãos da mãe, que caiu de tontura, totalmente desesperada. – Eu devia te matar agora mesmo, Karen – apontava a arma tremendo com a raiva. – Eu devia te matar.
- Por favor, não – interviu Diana, de subitamente. E Carlos, de sobressalto, se virou disparando a pistola contra ela.
Karen gritou. Carlos apontou a arma mais uma vez para ela, mas não atirou, apenas saiu da casa carregando Pietra em seus braços.
A mãe se aproximou da janela e viu Carlos colocando a filha dentro do carro e saindo em disparada sendo seguido pela polícia, que se aproximava bem na hora em que ele guardava a arma.
Diana estava no chão. Não estava morta, o tiro tinha atingindo seu ombro, mas ela perdia sangue demais. Karen ligou para a emergência e viu todo o caos consumir sua vida naquele dia.
A polícia retornou, e com ela trouxe a notícia de que seu marido tinha morrido. E se fosse apenas isso ela estaria feliz. Seu marido morreu após derrapar na estrada e descer encosta abaixo, capotando várias vezes, e, infelizmente, ele não estava sozinho no carro.
- Não! – gritou – Não! Minha menina não!
O desespero foi grande. Sua mente estava atordoada, seu corpo entrava em estado de choque, tremia incessantemente. Correu para o banheiro, abriu todos os fracos de remédio que possuía buscando cometer suicídio, destruiu tudo o que encontrou, suas mãos sangravam e as paredes ecoavam seus gritos de insanidade. E antes que os polícias entrassem para acudi-la, ela enxergou o resultado do teste de gravidez que tinha feito.
Desmaiou.