HIVERN


É estranho. É muito estranho, ter de escrever tudo o que vou começar a escrever. Escrever sobre mim, sobre meus pensamentos, da forma que eles surgem tão claros em minha mente e depois se tornam tão distantes, quando quero passar para as peles de texugo que separei para que pudesse escrevê-los. Meus pensamentos trabalham em uma velocidade tremendamente acelerada, que acho que eu não consigo acompanhá-los para relatar tudo em manuscritos. Às vezes, eu penso até que sou um garoto especial, um garoto que pode fazer grandes coisas, algo que faça pessoas me aplaudirem. Eu não sou um gênio, longe disso, não sei fazer cálculos nem mesmo escrever corretamente, eu não entendo todas as regras da abençoada arte da gramática, e as pessoas que tentaram me fazer entender desistiram após algum tempo. Elas diziam que eu era um menino lunático, que vivia em outro mundo, que eu estava predestinado a limpar merda de porco. Eu chorei por vezes por causa dessas pessoas. Chorei muito e, pra ser sincero, até hoje eu ainda me pego chorando por culpa delas. Parece que elas são enviadas por deuses malignos para me atormentar, pra me abater, me oprimir. Mas eu nunca acreditarei no que elas me disseram.
Meus pensamentos giram em torno de histórias, lendas e fantasia. Eu me pego muitas vezes durante o dia deixando de realizar uma tarefa apenas para deixar minha mente voar pelos horizontes da imaginação. Nesses momentos, eu me separo de mim mesmo, o mundo parece que não existe ao meu redor, deixa de ser real, a realidade se torna os meus pensamentos, as coisas que imagino. Talvez isso faça de mim realmente um lunático, mas é assim que eu sou, é assim que eu amo ser.
Hoje o dia está bem quente, por isso minha pele fica bastante vermelha, uns caroços começam a surgir, várias pequeninas bolhas se formam e começa uma coceira desgraçada. Ainda bem que meu pai não sabe ler, pois se ele soubesse e visse o adjetivo que eu acebei de usar para a coceira, eu ia apanhar até a morte. Até a morte já é demais, meu pai não ia me matar por isso, mas eu ia apanhar muito. Meu pai é um homem que acha que xingamento traz má sorte, ele é puramente supersticioso. Não importa o quão pouco seja o xingamento, ele sempre acha que é o pior dos males. Ele é um padeiro, e uma vez todos os seus clientes passaram a comprar pão com outro padeiro, e ele culpou meu tio Avelino por isto. Ele disse assim:
- Você pronunciou esse nome eu meu estabelecimento. Você deveria arcar com todos os prejuízos.
Meu tio ainda contestou.
- Eu só disse: que bosta.
Para meu pai, até mesmo “bosta” traz má sorte. E meu tio tinha trazido ainda mais a má sorte para a padaria.
- Você disse novamente, Avelino. Será que não consegue me respeitar? Será que vou ter de te expulsar?
Então tio Avelino se sentiu culpado e passou a espalhar que o preço na padaria de meu pai tinha abaixado, e com isso as pessoas voltaram a comprar o pão de cada dia com meu pai, que relutou em ter de abaixar o preço, mas depois percebeu que fora uma boa ideia.
Eu tenho de me atalaiar para não escrever palavras que meu pai não goste. Esse é o ruim da tinta; ela não apaga assim tão fácil, precisa de um processo longo de raspagem e eu não sei fazer. Mas se alguém ler isso pro meu pai, minha pele esquentará ainda mais. Ele diz para eu seguir os passos dele. Não pronunciar esses tipos de coisas, pois ainda sou muito jovem e a má sorte me acompanharia até o fim de minha vida. Meu pai me encontrou nos fundos da padaria, em uma noite fria de inverno. Disse-me que meu choro estava sendo abafado pelos fortes ventos, que tinha sido sorte ele ter ido despejar o lixo um dia antes do dia que ele despejava costumeiramente. Se não fosse por isso, eu já estaria morto. Eu fiquei vários dias entre a vida e a morte, e muito mais para a morte do que para a vida, só que trouxeram um druida que estava de viagem por essas terras e ele conseguiu expulsar a enfermidade que me tragava. O druida foi quem me deu o nome que tenho hoje, Hivern, que significa inverno na língua do druida. Não sei por que meu pai deixou o druida me batizar, e nem sei por que o druida me batizou com o nome do inimigo que tentou me matar. Aliás, o inverno não tem culpa de nada, não foi o inverno que tentou me matar, e sim a pessoa que me abandonou. Não posso dizer que foi minha mãe, pois não sei se foi realmente ela; alguém pode ter me roubado dela e depois ter desistido de me criar, ou então nem queriam me criar, apenas fazer sofrer a mulher que me pariu. Mas, de qualquer forma, fico pensando como alguém é capaz de fazer uma coisa dessas. Não há como apagar o passado, mesmo que se torne uma tênue reminiscência, isto já está marcado como parte de mim.
Hoje à noite meu pai trará os pães que ele coloca novamente no forno quando completa três dias de dormido. Meu pai prefere comer com a geleia de framboesa que Dona Helena vende em seu armazém, assim eu posso ir lá ver a filha dela, Luiza, o fruto de minha árvore, o meu raiar do sol, minha essência de vida. Toda vez que vou ao armazém Dona Helena me recebe com um sorriso, eu procuro logo Luiza e essa também me recebe com um sorriso. Dona Helena me ama e eu amo a filha dela. Uma vez ouvi meu pai conversando com Dona Helena e ela disse que eu e Luiza gostávamos um do outro. Eu não sei de que forma de gostar ela falava, porque ela também disse que nós ainda não sabíamos o que era o amor, pois não tínhamos idade para isso, mas que algum dia iriamos saber e que ela ficaria muito feliz em ver Luiza e eu juntos. Mas, se eu ainda não sei o que é o amor, o que é que eu sinto, então? Se não for amor, eu tenho até medo de quando eu realmente gostar de alguém.
Eu e Luiza, quando menor, corríamos em disparada pelas ruas de barro daqui da rua. Era um tempo muito bom; éramos crianças felizes e sem obrigações. Corríamos com as outras crianças, com os meninos da rua de trás. Sempre estávamos juntos. Só que uma vez eu peguei Luiza e um dos meninos da rua de trás encostando os lábios. Eu me escondi detrás dos entulhos e fiquei só observando os dois. Até então, eu sempre achei que Luiza gostava de mim, só era muito acanhada, mas ali eu vi que ela não gostava de mim. O chão se abriu sobre meus pés quando eu vi aquela cena, eu não consegui fazer nada além de observá-los. Depois eu me irritei comigo mesmo por ter me prestado aquele papel, nem coragem de sair do esconderijo e colocar o garoto pra correr eu tive (se bem que ele que poderia me colocar pra correr) eu fiquei apenas observando a cena. Mas ainda bem que eu não sair do esconderijo pra ir contra o garoto. Seria uma ação que, talvez, hoje, eu também me arrependesse. Quando eles cansaram de encostar os lábios, Luiza veio me procurar. Eu jurei para mim mesmo que ia tratá-la com frieza, mas não consegui, eu ainda estava apaixonado por ela. No outro dia, os dois voltaram a se encontrar, e dessa vez eu a tratei mal.
- Eu não quero saber de você, sua traidora – eu disse.
- O que aconteceu, Hivern. O que foi que eu fiz? – ela possuía uma voz que me deixava louco só de escutar. Seus cabelos negros formavam uma única trança atrás da cabeça, sua pele bem branca possuía o cheio do melhor dos perfumes, seus olhos castanhos eram tão atraentes que me faziam desviar o olhar para não ter de me ajoelhar na sua frente e pedir para que ela namorasse comigo. Ela já era linda quando menor.
- Eu não quero saber de você, Luiza. Vá embora.
- Não somos mais amigos? – ela encurtou o ombro, fez uma cara de tristeza.
- Se um dia você foi minha amiga, já não é mais. Agora, me deixe em paz! – disse com bastante raiva.
E ela foi embora, em lágrimas. Aquele dia eu também fiquei bastante triste, sem saber o que fazer. Triste por ter a tratado mal, mais triste ainda pela cena que vi. Mas erámos crianças, e criança tem uma facilidade de perdoar invejável. Eu falo assim como se já fosse um adulto, mas hoje eu vejo que a facilidade que eu tinha de perdoar a uns seis anos atrás, hoje, eu já não tenho mais. Em uma tarde de sol fraco e céu acinzentado, lá estava eu e Luiza conversando juntos novamente. Ela não tinha mais visto o garoto da rua de trás, ela disse que ele havia se mudado para outro lugar. Eu abri um sorrisão quando ela me contou isto, ele era o único com quem ela se dava bem depois de mim, e quando ele partiu, eu fiquei sendo o único com quem ela gostava de ficar, e ela já tinha me perdoado pela ignorância que a fiz.
E foi nessa tarde que aconteceu algo que mudou a minha vida.
Naquela época eu ainda não era tão fascinado por truques e artimanhas como sou hoje, eu até duvidava de algumas coisas que ouvia falar. Para que eu acreditasse em algo, tinha de me mostrar. E foi isso que aquele ilusionista fez.
Todos dizem que um ilusionista de verdade não pode ser um mago, pois a magia faria todo o trabalho que era para o homem fazer. Não teria graça, pois nós saberíamos que quem fez o truque foi a magia, e não o ilusionista. Mas aquele ilusionista que se chegou para mim e Luiza naquele dia com toda certeza era um mago. Eu aposto com qualquer um, eu andaria pelado na rua se aquele ilusionista não fosse um mago.
Só estava eu Luiza quando, subitamente, ele apareceu em nossa frente, nos mostrou um baralho de cartas e começou a misturar. Depois, ele fez um leque com as cartas, colocando a nossa frente. Cada um de vocês, pegue uma, ele nos disse, ainda me lembro bem que foram essas palavras que ele usou. E se eu não era tão fascinado por truques e mistério naquela época, Luiza já era. Eu tentei ir embora, tinha achado aquele homem muito estranho, mas ela insistiu para que ficássemos e puxássemos as cartas, e eu aceitei.
- É melhor irmos embora – ainda insisti.
- Se você for embora, eu fico. E se acontecer alguma coisa comigo, você será o culpado, Hivern. Quer que aconteça algo comigo? – ela era uma chantagista que só.
- Não, não quero – acabei por dizer.
Então seja homem e fique comigo, ainda disse-me ela com um olhar frio e calculista que somente as mulheres são capazes de fazer. Ele, o ilusionista, abriu um sorriso meio que cínico. Usava uma cartola preta na cabeça que deixa que seus cabelos saíssem pelas bordas e um manto negro de tecido grosso, mas caro.
Luiza puxou a carta, minha barriga gelou, tinha curiosidade de saber o que era até mesmo antes dela, e quando ela virou a carta, vimos que estava em branco.
- Não tem nada aqui – disse Luiza, desapontada.
O ilusionista sorriu.
- Olhe de novo – disse.
E quando olhamos novamente tinha um bobo da corte na carta, com guizos no chapéu, segurando uma adaga. Não entendíamos o que aquilo queria dizer, e então olhamos para o ilusionista novamente, mas agora já não era o ilusionista que estava ali, mas o bobo da corte da carta, e quando olhamos para a carta de novo, lá estava o ilusionista. Eles haviam trocado de lugar, e, espantados com aquele truque, olhamos para o homem vestido de bobo da corte parado em nossa frente, mas, incrivelmente, já não era o bobo da corte, e sim o ilusionista novamente. Ficamos espantados com o que tínhamos visto, apenas no tempo em que olhávamos para a carta e para o homem ele era capaz de mudar de forma de uma maneira incrível. Luiza sorria por isso, sorria em empolgação tremenda porque amava aquele tipo de coisas, e eu tremia de medo.
- Agora veja novamente o que tem na carta – nos disse o ilusionista – Aliás, você, garotinho, tire a sua também – e estendeu as cartas para mim.
Obediente, eu tirei.
- Mantenha sua carta virada, garotinho. E você, menina, vire a sua e só revire quando eu ordenar. E quando isso acontecer vocês verão nas cartas aquilo que mais desejarem. O que mais desejarem, certo?
E fizemos o que ele pediu.
- Pronto, podem virar.
Na minha carta estava o retrato de Luiza, bela como sempre, um retrato perfeito da sua perfeição, o fruto da minha árvore estava esplendida. Mas na carta que ela segurava não era a minha foto que estava lá, mas o retrato do garoto da rua de trás. E ela sorriu. Sorriu de alegria genuína. E eu fiquei tão triste que nem sei por que escrevi estas coisas.

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